Este depoimento está no facebook do poeta Victor Araújo, poeta brasileiro e pai do Bernardo que é colega no Conservatório de Lisboa da minha filha Sofia. Leiam. É demolidor, não há nada a acrescentar.
"No passado 25 de Abril, comemorei a liberdade e postei por aqui fotos alegres com o meu cravo no bolso. O que não contei foi o que aconteceu na sexta, 23 de Abril, quando ia de autocarro para ver o Be cantar no coro do Conservatório de Música.
Pois estava eu no autocarro 742, já pelos lados de Alcântara, e num banco mais à frente um homem, não sei se bêbado ou só cansado, dormia. Foi então que uma senhora brasileira, nos seus quase sessenta, entrou no autocarro falando ao telefone. Com o som da conversa, o homem acordou e, vendo tratar-se de uma mulher brasileira, começou a gritar furioso: “Só podia ser brasileira, detesto brasileiros, têm é mais que voltar para a vossa terra que ninguém vos quer por cá!....”. Enterrado no banco, com a minha filha de 4 anos ao lado, assistia àquilo com um nojo, uma raiva crescente, calculava o que aconteceria se interviesse, se a coisa acabasse por se tornar física e a minha filha tivesse que assistir a um show de horrores ainda maior? Mas a racionalização não resistiu à minha indignação e retruquei que ele não podia falar este tipo de coisas, que eu não ia ficar calado ouvindo tanto absurdo, que eu também era brasileiro e ele ofendia-me diretamente. Como um bom covarde, o homem baixou o tom de voz no mesmo instante, disse que o problema não era comigo, mas com ela. Ao que retruquei que o problema era comigo sim e com um país inteiro. A senhora à minha frente, angolana nos seus sessenta anos, sentiu-se segura para fazer coro à minha indignação, reprimindo-o, como uma mãe sábia reprime a crueldade imatura de um moleque.
Só neste momento o motorista do autocarro resolveu intervir, dizendo que se a discussão não acabasse logo, pararia na polícia e iríamos todos presos. Ameaçou não o homem que estava agredindo uma mulher com palavras de ódio, mas todos nós. Claro que nem eu nem a senhora angolana ficamos quietos, replicamos que parasse na polícia mesmo, pois havia acontecido um ato de xenofobia e que aquele homem deveria ser responsabilizado. Resultado: o covarde saiu na próxima paragem, a senhora brasileira saiu quieta e humilhada algumas paragens antes, o motorista não fez nem disse mais coisa alguma.
Desci com a minha filha na paragem do Conservatório e fomos assistir ao concerto do coro do Conservatório sob o tema do 25 de Abril, da liberdade. Chorei baixinho, não só de orgulho do meu filho que estava cantando muito bem, mas também por perceber que esta tão exaltada liberdade não é para todos."
Víton Araújo, Facebook, Abril de 2021
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